Reflexão de José António Bandeirinha a propósito obra de João Mendes Ribeiro

Texto:  José António Bandeirinha

Foto: José Campos

APRESENTAÇÃO DA MONOGRAFIA JOÃO MENDES RIBEIRO
TEATRO DA CERCA DE SÃO BERNARDO 18-V-2017

Quero, em primeiro lugar, agradecer ao João ter-me convidado para a apresentação deste livro sobre a sua obra entre 2003 e 2016.
É sempre um prazer reflectir sobre a obra de João Mendes Ribeiro.
Mais agradável se torna ainda quando essa reflexão é feita em conjunto com a Maria Milano, com o Jorge Figueira e com o Nuno Grande.

Mas tenho de dizer-vos também que me é um pouco difícil falar sobre uma obra que, sob determinados aspectos, me é tão próxima. Porém, e bem ao contrário do que reza a cartilha da crítica hegemónica, eu gosto imenso de reflectir sobre as coisas que me são próximas. Acho que é muito necessário e muito produtivo, do ponto de vista do conhecimento, reflectir e discutir acerca das coisas que nos são mais próximas. Mais! Acho que é sobre as coisas que nos são próximas que vale realmente a pena saber mais, conhecer melhor.

Mas porque será que a obra de João Mendes Ribeiro me é próxima? Afinal de contas, os tempos, os espaços, os clientes e as ideias que partilhámos, embora bem firmes na memória, já lá vão muito distantes no tempo, não é seguramente por essa razão.
É por razões bem mais prosaicas, eu acho… embora não o pareçam imediatamente. O que aqui vos trago é também, e essencialmente, um exercício de procura das razões dessa proximidade.

A Arquitectura do João Mendes Ribeiro é uma arquitectura universal, ponto. E procura insistentemente os seus padrões de universalidade na subtileza do equilíbrio entre a abstracção e a procura de um significado absoluto para a Arquitectura, enquanto modelação do espaço (e consegue-o quase sempre, esse equilíbrio).
Poderia dar-vos aqui inúmeros exemplos, extraídos deste livro e mesmo anteriores. Mas vale por todos os exemplos o caderno que a Uzina Books, a editora, inseriu como anexo. Cada uma das obras vem referenciada por um desenho síntese. Um só desenho.
Esses desenhos, quase sempre vistas superiores, axonometrias à mão levantada, procuram um significado em si mesmos, mas, simultaneamente, estendem-se até ao limite inerente à compreensão desse significado. É um “jogo” de sábia compreensão do equilíbrio entre a proverbial necessidade de inserção na cosmografia dos lugares e a revalorização do objecto como centro de um sistema próprio, que se está a ajudar a criar através da Arquitectura. É a transformação do mundo que se reinicia em cada projecto de transformação de uma realidade necessariamente parcelar, na boa tradição albertiana.
Esta qualidade que, não sendo exclusiva, é muito própria do trabalho de João Mendes Ribeiro, justifica em meu entender duas coisas:

  • por um lado, a impossibilidade de encaixe taxonómico da sua obra, demasiado fiel ao contexto para os talibãs do conceptualismo objectual, demasiado isolada na sua própria concinnitas para os paladinos da deriva contextualista;
  • por outro lado, está na base do êxito da sua produção cenográfica, a cena é um espaço que se pode aperfeiçoar até ao seu próprio limite, é um espaço de concepção aberto ao mundo mas, simultaneamente, é um espaço de concepção no qual esse mesmo limite pode funcionar como barreira de isolamento das imperfeições do mundo.

Há, portanto e sempre, na obra de João Mendes Ribeiro, uma convicção inerente (eu até arrisco, uma convicção que lhe serve de ponto de partida) — a convicção que a sublimação do contexto (tarefa quase impossível, sobretudo quando lidamos com o contexto português) começa na sublimação da própria encomenda (absolutamente domável e delimitada por natureza).

E essa universalidade, que é uma condição de base, é também, em meu entender, a principal razão de inequívoca inserção desta obra no plano universal. Hoje, sem qualquer dúvida, a obra do João Mendes Ribeiro tem um lugar entre as mais referenciadas obras de Arquitectura Contemporânea no contexto global.

Trata-se portanto de mais uma capacidade, a juntar a tantas outras que o talento de João Mendes Ribeiro sintetiza – a capacidade de criar um universo próprio, substancialmente nutrido pela convicção que a sublimação do contexto tem necessariamente de começar na sublimação da obra. É, nesse sentido, uma convicção profundamente albertiana, como já disse.

Citando Calvino, quando se refere aos livros, “Chama-se clássico um livro que se configura como equivalente do universo, tal como os antigos talismãs” . Ora, também as obras de João Mendes Ribeiro se configuram discreta e veladamente como equivalentes do equilíbrio do universo e, nesse sentido, não podem deixar de ser universais.

É assim em qualquer uma delas, marcam presença fiel numa luta contra o tempo da contaminação, contra a inevitabilidade da degradação. Assim vão envelhecendo, sempre com a dignidade do sublime.

Mas deixem-me escolher algumas de entre estas obras universais. Deixem-me, mais uma vez, escolher as obras de Coimbra. Porque, tal como a sublimação do contexto a partir da obra, também Coimbra foi, é, e eu creio que será sempre, um ponto de partida para João Mendes Ribeiro. Voltando a Calvino, e antes dele a Marco Polo, o malogrado viajante veneziano que descreveu as suas viagens, também as obras de João Mendes Ribeiro se fundam nessa condição local para melhor se instituírem como universais. Olhamos sempre todos os universos com os olhos do nosso próprio universo, que é o mesmo que dizer, olhamos sempre as cidades com os olhos que viram primeiro a nossa própria cidade. Neste sentido, estas obras são universais também porque Coimbra (ainda) é universal. Só para me referir ao arco temporal deste livro, olhemos as obras que conhecemos, as obras de Coimbra:

  • o Laboratório Chimico, um Museu de Ciência que, na verdade, mostra Arquitectura;
  • a Casa das Caldeiras, a densa complexidade de um programa mitigado, que trepa pela encosta e a transforma num território ordenado
  • a Casa Robalo Cordeiro, a prova viva e vivida que a cidade densa e consolidada pode continuar a ser residencial por eleição e definição;
  • a Casa da Escrita, outra memória, desta feita uma memória cultural e literária transformada em vida através da arquitectura
  • a Ordem dos Farmacêuticos, a complexidade topográfica da cidade transformada em matéria de sublimação arquitectónica
  • o Mosteiro do Lorvão, o regresso à dignidade de um símbolo maior da identidade local e nacional;
  • o Armazém e Escritórios da Adémia, a revalorização dos símbolos da produção industrial pela qualidade espacial e cultural, algo de que Coimbra tanto carece;
  • e, finalmente, as Estufas Tropicais do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra; embora muito tarde, chega agora algo de que Coimbra tanto carece — a digna homenagem da contemporaneidade aos momentos mais marcantes de uma história gloriosa nos planos artístico e cultural.

Todas são obras que, para além das qualidades intrínsecas a que antes já aludi, se caracterizam por uma relação intensa e “desenvencilhada” com a cidade onde se inserem. Resolvem-na e explicitam-na (à cidade). Mas simultaneamente insinuam-se como símbolos que se autonomizam, ou seja, são peças únicas mas simultaneamente são modelos de intervenção na cidade.
Não, não estamos em presença de uma “atitude” perante a “questão da memória urbana”, ou do “património”. Não as podemos engavetar numa dessas matrizes de intervenção no espaço patrimonial (Távora, Scarpa, Souto Moura). São, isso sim, obras que se fundam na envolvente urbana, para se sublimarem a si próprias e, desse modo, sublimarem, na medida do possível, o espaço urbano e topográfico onde se inserem.

A obra que João Mendes Ribeiro faz por todo o lado contém em si sempre um bocado de Coimbra, e, nesse sentido também, é uma obra universal.
Mesmo a cenografia, que se insere num topos simultaneamente confinado e universal, mesmo a cenografia só podia ter nascido em Coimbra, há cerca de 25 anos atrás, com o Amado Monstro no Gil Vicente, ou com as cadeiras do desgraçado Teatro Sousa Bastos implantadas como Fénix renascida (não Fenice), na Praça da República. Um monumento à decadência de um teatro, que visava a renascença do Teatro. Isto tudo numa cidade que então iniciava também o seu triste ciclo de decadência. Poética sobre a poesia, sem nunca, contudo, ceder ao decadentismo. Foi esse o ponto de partida para a sua vasta obra cenográfica, hoje mundialmente reconhecida (perdoem-me esta incursão pelos meandros do inside knowledge).
E a cidade, ou o que resta da cidade, entretanto, como se faz? Como se alimenta a si própria? Com técnica? Com as velhas e novas cartilhas do Urbanismo, que se arrastam como despojos que herdámos do Movimento Moderno? Como o lastro tecnológico que ainda e sempre carregamos, das smart cities, dos territórios metropolitanos, dos sustainable energy systems?
Mas mesmo esses despojos, por muito obsoletos que sejam, em Coimbra transformam-se e requentam-se até ao abismo da vacuidade, até ao absurdo. É claro que esses resquícios da velha técnica moderna em Coimbra são ineficazes. Mais, chegam a ser destruidores.
Ouvi, há muitos anos, numa conversa corrente de estirador (talvez ele já não se lembre) o João dizer serenamente, como sempre foi seu timbre, que a cidade se faz com talento.
A cidade faz-se com talento, João, embora não só com talento, eu diria com uma mistura equilibrada de talento e de ordem civil. Porque a última alimenta e enobrece o primeiro. Hoje, talvez mais do que nunca, também estou ciente disso.
Mas obviamente que não é com todo e qualquer tipo de talento que se faz a cidade.
Tem de ser um talento vocacionado para a ordem, para o sublime, para a concinnitas, para a sistematização das funções, para a organização dos espaços. Por esta ordem.

E tão arredado — tão dramaticamente arredado — que, quer o talento quer a ordem civil, andam das ruas e das praças de Coimbra.
Por vezes, encontramo-los ao virar de uma esquina, no alcance visual de um enquadramento urbano, na dimensão abstracta de um pavimento, no equilíbrio relativo das escalas.
O talento encontra-se aí, límpido, esparso e bem delimitado, aqui e acolá, normalmente junto das obras do João Mendes Ribeiro.

18 de Maio de 2017

José António Bandeirinha